Em busca da Páscoa perdida
Era uma aldeia da Beira Alta, janelas abertas para a Serra da Estrela. Uma aldeia igual a tantas outras: igual na pobreza extrema, na infância desprotegida, na fome, na falta de escolaridade, nos pés descalços, na falta de cuidados médicos. Reinava a toda poderosa Igreja católica, a beatice hipócrita. O mafarrico- dizia-se – espreitava em todos os cantos.
Clara suspirava pela chegada da Páscoa que trazia consigo a Primavera – dias tão felizes! Antes chegava a quaresma e Clara, família católica, não gostava nada daquelas semanas tristonhas. Tinha medo ir à Igreja, os Santos, nos seus altares dourados cobertos com véus roxos, o Sr. Prior com paramentos roxos, tudo roxo à sua volta…
A Mãe não perdoava: tinha que se confessar, tinha que comungar. obedecia, tinha sentimentos de culpa:
– Sr. Prior, menti à minha Mãe, andei à bulha com a Zeza do Cimo do Povo, passei uma rasteira à Cândida de Além do Ribeiro…
A voz irrompia do fundo da escura casinha de madeira onde Clara se ajoelhara:
– E maus pensamentos, tiveste maus pensamentos minha menina?
Que não, que não tinha tido. Pelo tom de voz percebia que era pecado, coisa grave. Corria para casa: – Mãe, explica-me. O que queria o Sr. Prior dizer?
– Deixa lá, minha Clarinha. Agora não tenho tempo para explicações. Vai brincar, anda …
E aquela coisa da bula, a “desobriga”? Na missa, o Sr. Prior, anunciava aos Caríssimos Irmãos que era pecado comer carne em tempo de Quaresma. Carne só se pagassem a “desobriga”
Resumindo: os ricos comiam carne durante todo o ano, incluindo o período da quaresma porque esse direito vendia-se e eles compravam. Os pobres que só muito raramente comiam carne, continuavam a só muito raramente comerem carne. Não tinham dinheiro para a comprar, muito menos para pagar a “desobriga”.
Logo chegava o Domingo de Ramos, a seguir ao Domingo de Páscoa.
Na bênção dos ramos, depois da missa do meio dia, o largo da Igreja ficava atulhado, a abarrotar de gente miúda e graúda. Todos se conheciam, todos queriam levar o ramo mais vistoso, receber a bênção divina e colocá-lo, devidamente benzido, nas portas e janelas das suas casas para proteção divina de toda a família. Feito com amor: ramos de oliveira, de alecrim, de rosmaninho, de flores cheirosas. Bem longe ficariam as ameaças do mafarrico, o ramo traria saúde, boas colheitas, prosperidade, harmonia. Clarinha, em bicos de pés, esticava o braço para o seu ramo ser benzido com água benta. Percebia a importância do momento, tudo ficaria bem com os seus queridos pais, com os manos até ao ano seguinte.
A missa de Domingo de Páscoa, da Ressurreição de Jesus, era um momento alto. As famílias, pobres ou ricas com os seus melhores fatos, esquecia-se a dureza da vida. Fazia-se tarde e todos ansiavam pelo almoço melhorado daquele dia.
Pais e filhos, tios, primos, avós todos irmanados à volta da mesa no almoço festivo de domingo de Páscoa. A Mãe começava a cozinhar de véspera. A imagem da Mãe na cozinha, do milagre dos mil e um cheiros que impregnavam a casa… Clarinha mal podia esperar pelas sobremesas que enfeitavam o velho aparador: arroz doce, leite creme com farófias, pão de ló, pudim, amêndoas. Um tempo interminável à mesa, lá chegava por fim a ordem do Pai: Meninos, peçam licença para saírem da mesa.
Era o que queriam ouvir! Uma explosão de alegria, bora lá brincar…
Corriam livres no jardim da casa, jogavam à carica, à cabra-cega, saltavam à corda, os rapazes jogavam á pelota.
O jogo de Clara, o que mais gostava, era o jogo das escondidas. Os buxos altos do jardim, eram o esconderijo perfeito. Os buxos saudavam-na com a sua voz de buxo “…uma voz pequenina, húmida e verde” (in “O rapaz de bronze” de Sophia de Mello Breyner).
Faltava ainda a visita Pascal: o Sr. Prior visitava todas as casas de todos os paroquianos, acompanhado por sacristães, acólitos e uma procissão de miúdos suspirando pelos doces oferecidos pelos donos da casa. Clarinha e os irmãos beijavam, temerosos, os pés de Cristo na cruz. A casa era abençoada com água benta. O Padre só voltaria a entrar lá em casa na Páscoa seguinte e aquele era um momento muito solene para todas as famílias.
Continua a haver Domingos de Ramos, Domingos de Páscoa. Almoços de Famílias reunidas, crianças a jogar às escondidas. Felizmente. Mas, tantos “mas” pensa Clara. Demasiados. Cada um pertence a alguém que ela amou e que nunca mais estará presente no almoço festivo de Páscoa ou de um outro domingo qualquer…
“Vamos lá, Clara. Só existe o hoje e em ti vivem muitos dos que já não estão. O teu hoje é este domingo primaveril em família. Aproveita-o, mergulha na onda, ama os que te rodeiam, distribui alegria”.
Assim seja!
Margarida Maria Almeida
Oeiras, Páscoa de 2022