São Correia – Os Amanhãs Sonhados
São Correia – Os Amanhãs Sonhados
Querida, querida São! Como falar de ti nesta encruzilhada brutal da tua vida? Onde as palavras certas para dizer de ti aos outros? Amor, casa, pão, ponte, luz! Retenho em mim a tua alegria, a tua gargalhada imensa, o teu ar de menina rebelde. Como ter tão viva a tua energia sem fim e, de seguida, tropeçar na realidade do buraco negro de uma doença que te mantém refém e te imobiliza a ti, incansável lutadora por um mundo mais justo! A doença roubou uma parte de ti, impossível prender a tua essência, as tuas asas acolhedoras!
ELA – Esclerose Lateral Amiotrófica! Uma doença rara – cerca de 800 portugueses diagnosticados – como foi acontecer-te a ti, militante empenhada nas grandes causas da solidariedade, firme na defesa intransigente dos discriminados, dos “invisíveis” acossados por uma sociedade desigual, racista ainda…
Falei com o Pedro – Pedro Jorge, o marido da São, Amor de uma vida – sobre o absurdo desta doença neurológica: TODO o seu organismo funciona na perfeição, está tudo bem, menos a morte prematura dos neurónios motores que conduzem a informação do cérebro aos músculos. Sem informação, os músculos paralisam, impossível andar, comer, falar, mastigar, respirar sem ventilador…
Raciocínio e audição intactos, os olhos da São, onde habita o azul mais azul e mais intenso do mar de Lagos, são a mágica ferramenta de ligação ao mundo que a rodeia. Os olhos seguem-nos, sorriem, falam connosco. Falam, também e muito, com os cuidadores, com o mundo: um complexo computador adaptado faz a ponte lendo e escrevendo, letra a letra, o olhar da São. E também fala, e diz o que a São quiser! Atenta à atualidade, segue a vida do nosso concelho, do mundo que é o seu, lê, vê televisão, escreve mensagens, faz apelos de material escolar para os “seus” meninos dos países de língua oficial portuguesa…
A São está presa à sua cama, é verdade! Mas presa, presa mesmo, só à vida, ao amor que dá e recebe, ao mundo que lhe entra quarto dentro: o maravilhoso Projeto, ImaginaSÃO, pensado pela amiga Claúdia Andrade leva-lhe regularmente teatro, marionetes, música intercultural, cantigas. Um quarto que é um comovente palco de amor, de partilha de amizade!
“O festival mais bonito da Via Láctea!”, escreveu a Cláudia Andrade. “Até os meus olhos cantaram”, disse a São no Facebook no dia em que o Pedro Branco cantou para ela. É assim o milagre de quem se quer bem!
A São e o Pedro conheceram-se em, Lagos: músico nas horas vagas, formado na escola do Hot Club, descia até ao Algarve para tocar no muito in “BarINBar”: a forma mais barata de ir à praia, explica com simplicidade. Com traços de Alain Delon – diziam elas! – a São prendeu para sempre o sósia do galã dos galãs daqueles anos mágicos. Criaram três filhos rapazes – meninos de ouro e de solidariedades – cultivaram um amor que dura até hoje, sedimentado numa vida cúmplice de aventuras mil, amor firme que derrota todos os dias a doença que enfrentam juntos. O Pedro é um atentíssimo, exemplar e omnipresente cuidador, tal como o filho Manel: leem e antecipam os mínimos sinais de que a São necessita de ajuda, vigiam-na 24 horas por dia, 30 dias por mês, 365 dias por ano. O amor salva, acreditem!
O Pedro conta que, naqueles anos 80, a São era já o vulcão que se manteria em plena e intensa erupção durante toda a vida. Aos 18 anos, nas férias escolares, era porteira de um bar, distribuía folhetos, colava cartazes, pertencia a um clube de cinema, fazia babysitting, voluntariado num Lar de Idosos da Santa Casa da Misericórdia (onde recolhia mezinhas, rezas, contos, memórias preciosas…)
Eu sou inquietação: há sempre coisas para fazer!
Licenciou-se em Marketing e Publicidade, mantendo em paralelo o voluntariado: com as prostitutas do Intendente e com seus filhos, na alfabetização de mulheres dos bairros africanos. É um gosto inato, sabe que dar é também receber e que o contacto com outras culturas nos acrescenta.
Fez uma pós-graduação em Marketing Internacional, andou pela Bélgica, por França, ganhou contactos internacionais que lhe abririam uma promissora carreira na área que abraçou. Foi professora de Introdução ao Jornalismo, explicadora, formadora, alfabetizadora, trabalhou brevemente numa empresa…
Foi e é uma Filha atenta, Mulher apaixonada, Mãe doce, Avó babada, Amiga preciosa! Dava aulas de formação na Venda Nova, chegava cedo, circulava por ali e apercebeu-se da pobreza e do ostracismo que pesava sobre os moradores dos bairros africanos. Aconteceu então o marcante encontro com a realidade do Bairro 6 de Maio:
“Acho que foi aí que comecei a ser preta”, dizia de sorriso aberto, imagem de marca colada à sua pele! As Mães chegavam tarde do trabalho, as crianças ficavam sozinhas depois da escola! Começou a estudar com os meninos, com as meninas, com os jovens, num processo informal de alfabetização (dava para saberem apanhar o autocarro certo, para escrever uma receita…). Seria aquele o seu caminho, o da intervenção social.
Mais tarde, em Oeiras, cruzou-se com a São Fernandes, prestigiada assistente social na Camara Municipal.
-“Toparam-se logo uma à outra!” diz o Pedro ao descrever aquele encontro transformador, onde nasceu uma amizade e uma cumplicidade para a vida: A São Branca ganhou a Irmã que não tinha e um novo e grande Amor: a Assomada, Associação de Andebol Feminino e de Solidariedade Social, pensada para a comunidade cabo-verdiana da Outurela, Carnaxide, que continua a “rolar”, 25 anos depois…
A São Branca tinha três filhos rapazes, a São Preta tinha três filhos rapazes. Riram da coincidência e, a partir daí, os seis meninos foram criados juntos, irmãos para a vida! A São Branca foi fazer voluntariado para a Assomada com a São Preta, de voluntárias passaram a dirigentes. Milhares de jovens e de seniores passaram por ali, a Assomada faz parte da vida das Sãos: cada jogo de andebol, cada vitória, cada derrota era vivida com entusiasmo. Naqueles anos havia mais de 100 atletas federados de todas as idades. Em 2005 foram finalistas da Super Taça, ganharam a Taça de Portugal, uma vitória sofrida e “milagrosa” para um clube de gente pobre de um bairro periférico. Uma vitória que as levou a competições europeias!
Da Assomada sairia a melhor jogadora de andebol de mundo: Alexandrina Barbosa, estrela internacional que vinha jogar pela Seleção Nacional enquanto um avião privado a esperava para a levar de volta a Barcelona,
Este era o lado mais visível da Assomada, havia também o lado cultural, incentivando os jovens a voltarem à cultura da família; grupos de dança, de música, apoios diversos às famílias. O andebol era a ponte, importava cuidar dos alicerces: a escola (uma falta disciplinar implicava ficarem no banco enquanto o jogo decorria), a atribuição de responsabilidades dos mais velhos para com os mais novos, o apoio à procura de emprego, estratégias para obtenção da documentação necessária à legalização (naqueles anos escandalosamente demorada)! Sempre que fosse necessário, as Sãos estavam lá!
O objetivo não se resumia a serem campeões: tinham que ser parte do projeto, o desporto como alavanca, como nivelador social, uma forma “chamativa” de trabalhar a intervenção social e de atrair os jovens!
Um outro projeto apoiado pela Camara Municipal de Oeiras, “Regresso às origens”, bateu fundo no coração da São Correia: a concretização do sonho de todo o emigrante de regressar à terra natal uma vez na vida. Vinte e um idosos voaram para Cabo Verde, revisitaram a sua infância, reencontraram as raízes. Foi um trabalho duro o de localizar as famílias que tinham deixado para trás há décadas. A felicidade imensa do reencontro, vinte e um corações mais “quentinhos” para os anos finais das suas vidas tão duras…
O poder transformador do Desporto e da Arte
Acredito nos amanhãs sonhados e todos os dias trabalho, individualmente ou em conjunto, para que se cumpram, dizia e fazia a São Correia! Ao longo dos anos, muitos outros desafios se foram cruzando nos seus caminhos de “fazedora” de pontes:
Depois da Assomada, o projeto Ampliarte, da Companhia de Atores, ainda hoje, sedeada no Teatro Amélia Rey Colaço em Algés, onde, entre outras valências, levam à cena espetáculos de inquestionável qualidade.
O Ampliarte foi premiado pela Fundação Calouste Gulbenkian por boas práticas autárquicas. A São Correia era o “braço armado” para a intervenção social: teatro, música, dança, mas também a vertente transversal a todos os seus projetos: a arte e o desporto como imanes para uma ação mais profunda e transformadora: criação de emprego, como fazer um curriculum vitae, a legalização de emigrantes. Tudo! E, como sempre, tudo e ao mesmo tempo! Foi também assim na Outurela, junto de comunidades de adolescentes e jovens.
E foi ainda assim no Bairro dos Navegadores, Porto Salvo, o mais isolado de todos os bairros sociais, onde viviam 400 famílias de africanos, ciganos, portugueses pobres. Os “invisíveis” que ajudaram à construção de Portugal, iguais na miséria aos “invisíveis” dos anos 60 e 70, portugueses que ajudaram à construção dos países da Europa rica. Foi um projeto abrangente, subsidiado durante um ano: tinha todas as componentes dos projetos anteriores, com a novidade da criação do próprio emprego com a criação de uma empresa: a fantástica Engomadaria “Tudo Passa”! Hoje parecerá pouco, mas foi um passo de gigante concretizado pelo invencível empenhamento da São Correia! Querida São, como nós te admiramos e o quanto gostamos de ti..
Naquele mesmo Bairro decorreria, anos depois, a linda festa da homenagem comemorativa dos 50 anos da São Correia e a renovação dos votos do casamento. Foi uma emotiva cerimónia religiosa intercultural; festa rija como só os africanos sabem fazer: muito comida, muita música, muita dança (africanas, pois claro), alegria a rodos, a São a dançar e a rir deslumbrante num lindíssimo vestido de pano africano. Há dias mágicos, tão, tão felizes…
A São Correia é também uma excelente organizadora de festivais de música:
- “Verão no Parque”! Um sucesso marcante, vieram músicos de renome, houve workshops de olaria, de máscaras, rios de gente, alegria a rodos…
- Jazz in Lagos, uma oportunidade para jovens músicos. Um sucesso estrondoso e irrepetível nestes moldes: a pandemia, a incapacidade física da São Correia…
Ainda o espetáculo itinerante “Para Vós”, corria o ano de 2018. Criação e direção artística de Cláudia Andrade, direção de produção de São Correia, um solo coral sobre o lugar onde vivem as memórias, sobre raízes. Vinte sessões pelo país fora, todas diferentes, com a participação de criativas avós locais.
Se todos dermos as mãos, a roda fica maior!
E a Escrita, São? Como poderia deixar de lado a tua escrita poderosa? Falo dos textos publicados na tua página do Facebook, onde desfila um não acabar de personagens estranhíssimos que povoaram a tua infância em Lagos. Retratos profundos e irónicos, inesperados, o melhor e o pior do Homem, grandezas e misérias humanas imortalizadas pelo olhar terno e compreensivo da São Correia confrontada com as fragilidades dos seres humanos. Lembram-me tanto, as personagens do escritor Nobel da Literatura, Gabriel Garcia Marquez e o seu realismo fantástico, onde realidade, fantasia e sonho se misturam sabiamente. Aguardamos impacientes a publicação do Livro dos lacobrigenses (tradução: habitantes de Lagos!)
A São Correia foi recentemente condecorada pelo município, no dia 7 de junho último, com a medalha de Mérito Municipal de Oeiras, condecoração justíssima que reconhece o valor de toda uma vida dedicada aos que vivem no fio da navalha de uma sociedade hostil que os marginaliza. Voluntariado do coração! Parabéns, São Correia.
Em nome da São Correia, um apelo importante: ajudemos a APELA – Associação Portuguesa de Esclerose Lateral Amiotrófica para que possa continuar a apoiar doentes, familiares e cuidadores de pessoas atingidas por esta tenebrosa doença. Os equipamentos, o tratamento e bem-estar destes doentes necessita de todo o apoio que a sociedade civil possa generosamente dispensar a esta causa maior.
A Apela oferece apoio de qualidade técnica e humana a quem a ela recorre, muitas vezes antecipando o apoio Estatal, sempre insuficiente. Podemos ser sócios, fazer donativos, consignar 0.5% do IRS..
Deixamos aqui a mensagem que traduz na perfeição os valores que sempre nortearam a vida da São Correia:
- A interculturalidade é uma riqueza maior. É a herança que deixo aos meus filhos, a capacidade de interagirem de modo igual com pessoas diferentes.
Nota final:
Este texto foi escrito com o coração e com a emoção de falar de pessoas que admiro e respeito profundamente, pessoas como nós sobre as quais se abateu um drama difícil de imaginar. No entanto, há esperança no horizonte: o avanço da investigação no campo da medicina, as possibilidades ilimitadas da inteligência artificial ao serviço do Homem, as possibilidades infinitas da nanotecnologia vão encontrar a chave para ressuscitar ou substituir neurónios motores inoperantes, permitindo que os músculos possam fazer o trabalho que lhes compete. No campo da investigação tudo acontece a uma velocidade vertiginosa, não há limites: Amiga, é só esperar um pouco mais.